Semanas atrás uma polêmica campanha supostamente anti-racista intitulada "Somos todos macacos" foi iniciada após o jogador Daniel Alves, de forma provocativa, comer uma banana que foi lhe jogada em campo. Alvo de muitas críticas, a campanha utiliza uma antiga ofensa racista: o termo macaco. Será que reconhecer que "Somos todos macacos" combate o racismo ou o apenas tenta levar ao silenciamento do negro diante da ofensa?
E o que a biologia tem a ver com racismo?
As ideias racistas serviram de argumento contra a Teoria da Evolução no seu início e, posteriormente,o conceito de evolução sofreu releituras racistas, sendo usadas como ideologia de dominação pelo imperialismo europeu. Esse uso racista do discurso biológico se baseia em equívocos: as idéias de evolução com melhora, de que um organismo é mais evoluído que outro e a suposta existência de raças humanas. Para entender esses equívocos, vamos revisar darwinismo, neodarwinismo e um pouco de cladística.
Capa da Veja:O preconceito quebrou a cara para sempre?
A ancestralidade humana
Um dos impactos da teoria de Darwin foi a implicação de que o homem, diferente do que se pensava na época, não seria um ser especial criado por Deus, mas meramente um animal que compartilha o mesmo ancestral com outros primatas. Darwin sofreu resistência e foi ironizado em charges que o tratavam como macaco.
Charles Darwin defendeu que os organismos estão em constante luta pela sobrevivência na qual sobrevive o mais apto. Essa é a seleção natural.
Mas ele tinha um problema. A seleção é um processo que reduz a biodiversidade, então como explicar a diversidade de seres vivos? A reprodução sexuada seria a resposta. Entretanto, na época de Darwin, acreditava-se que a herança era por mistura. Os filhos resultariam de uma mistura das características dos pais. Assim, conforme essa ideia, a reprodução sexuada levaria a homogenização, e não a diversidade.
Um crítico de Darwin propôs uma história em que se um branco chegasse a uma ilha de negros, ele se tornaria rei, teria mulheres e filhos. Mas seus filhos não seriam mais brancos, assim como seus netos. Depois de várias gerações o traço branco desapareceria. Essa história racista demonstra o pensamento da época sobre herança por mistura.
O que faltou ao entendimento de Darwin foi as conclusões de um contemporâneo seu : Gregor Mendel. O monge através de cruzamentos de ervilhas demonstrou que a herança não ocorre por mistura,não existem perdas de características, mas recombinação de genes na reprodução sexuada. Chamamos de neodarwinismo a síntese das idéias darwinistas e mendelianas.
(Hoje se sabe que a cor da pele é resultado do somatório da expressão de vários genes, o que é um exemplo de genética quantitativa).
A idéia incorreta de herança por mistura e perda de características foi ainda utilizada tempos depois no nazismo, que defendia a manutenção da raça pura ariana. Veja, abaixo, figura representando este erro racista:
Sobre a evolução humana, Darwin afirma, em seu livro The Descent of Man, que "O homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva." Assim como o orangotango, gorilas e chipanzés, o homem apresenta um polegar opositor. O aumento do cérebro e bipedalismo foram tendências evolutivas do nosso grupo, assim como desenvolvimento da linguagem e da cultura.
Polegar opositor: uma característica ancestral
Mãos de um chipanzé e de um humano
Evolução humana e racismo
A medida que as idéias darwinistas foram sendo aceitas academicamente, elas ganharam releituras racistas que trataram o negro como inferior ao branco," menos" evoluídos. Defendia-se, na época, que a raça negra era intermediária entre os primatas ancestrais e os brancos, que seriam "mais evoluídos". Assim, essa ideia incorreta de evolução serviu como ideologia de dominação em época de imperialismo e disputa dos territórios africanos. Chamamos isso de darwinismo social.
Daniel Garrison Brinton, em 1890, escreveu que a "raça européia ou branca encabeça a lista [da evolução]; na outra extremidade encontram-se os africanos ou negros" . Louis Bolk, em 1926, afirmou que "Se o retardamento continuar no negro, o que é ainda um estágio transitório pode, nessa raça, tornar-se um estágio final. É possível a todas as raças alcançar o zênite do desenvolvimento que a raça branca agora ocupa."
Abaixo, uma ilustração racista da evolução retirada do livro Anthropogenie (1874) , de Haeckel:
Somos macacos? sim e não
O termo macaco se refere ao gênero Macaca. Como pertencemos ao gênero Homo, não somos macacos. Partilhamos ancestrais comuns com esse gênero pois pertencemos à ordem Primata.
Entretanto chipanzé e gorila também não pertencem ao gênero Macaca e são considerados vulgarmente macacos. Assim, o termo amplo "macaco" acaba por ser referir à ordem Primata excluindo dela, arbitrariamente,o Homo sapiens.
Em biologia, especialmente em sistemática filogenética ( ou seja, a sistemática que usa o parentesco evolutivo como critério de agrupamento), um grupo deve ser monofilético. Isso quer dizer que ele deve incluir um ancestral comum e exclusivo e todos os seus decendentes. Dessa forma, aos olhos dessa sistemática, não faz sentido falar em um grupo "macacos" que inclui o gênero Macaca, os gorilas e chipanzes, sem incluir o Homo sapiens. Todos compartilham um ancestral comum e exclusivo e, por isso, se o chipanzé é um macaco, por essa perspectiva o homem também o é.
Levando em conta a ambiguidade do termo, o mais exato é dizer que somos primatas, e que os macacos compartilham conosco um ancestral comum.
Abaixo, a árvore evolutiva da ordem Primata. Observe, nas setas, os gêneros Macaca e Homo, todos descendentes do primeiro primata.
Além de ser um erro ético e um crime de racismo, a ofensa "macaco" carrega dois equívocos biológicos: 1) trata o negro como um intermediário da evolução humana e 2) pressupõe que macacos sejam menos evoluídos que o homem. Vimos que o primeiro erro foi a ideologia de dominação utilizada pelo imperialismo europeu. E o segundo erro, como já discuti AQUI: não faz sentido dizer que um animal é mais evoluído que outro, já que cada um está adaptado ao seu ambiente . Por exemplo, o homem não é mais evoluído que peixes. Jogue o homem nu no oceano e verá quem vencerá a luta pela sobrevivência. Entretanto, isso não diminui a ofensa "macaco", pois as palavras devem ser entendidas no seu contexto,no caso, de depreciação e, por isso, tipifica crime.
Para a biologia não existem raças humanas
Raça, no sentido biológico, é subespécie. O processo de raciação é uma etapa da especiação. Não existem, no sentido biológico, raças humanas pois não há diferenças genéticas suficientes que agrupem brancos e negros em subespécies diferentes de Homo sapiens. O geneticista da UFMG Sérgio Pena e seus colaboradores encontrou mais semelhanças entre certos negros e brancos, do que entre brancos e outros brancos. Ele defende, por isso, o fim do uso do termo raça para humanos. Assim, um termo melhor seria o uso de etnia.
Entretanto, o termo raça prossegue sendo usado por movimentos sociais, não como unidade biológica, mas como um grupo com características sociais e históricas semelhantes.
Biologia e racismo
O discurso pseudobiológico foi e é utilizado como ideologia de dominação. Devemos nos posicionar contra erros conceituais que justifiquem o racismo. A miscigenação NÃO leva a perda de características (o nazismo se baseou em erro biológico). Os indivíduos negros NÃO são intermediários da evolução humana, não são menos evoluídos ( o imperialismo se beneficiou desta ideia errada) . Inclusive, não se pode dizer, biologicamente, que existam raças humanas. E ainda: nem faz sentido comparar indivíduos em relação a sua evolução e dizer que um é "mais evoluído" que outro.
O parágrafo anterior fala obviedades. Mas, temos que refletir: como hoje o discurso biológico está sendo utilizado para favorecer brancos?
A idéia de não haver raças humanas biológicas tem sido comumente utilizada como argumento contra políticas afirmativas como as cotas. Essa crítica supõe uma igualdade de condições mas ignora as diferenças de oportunidades dos indivíduos brancos e negros.
Acima, um exemplo do discurso biológico sendo utilizado contra políticas afirmativas
A miscigenação NÃO produz uma democracia racial. O fato de não existir raças humanas biológicas não pode esconder a história de exclusão social e não dissipa a necessidade de políticas afirmativas.
A quem favorece dizer que somos todos macacos?
Apesar de não existir raças humanas biológicas o racismo existe. Como vimos, uma das características do Homo sapiens é a cultura. E é inegavel que exista uma cultura negra, e, com isso, uma identidade negra, que justifica, em um sentido das ciências sociais, o uso do termo raça negra:
Assim, o racismo não tem a ver com o conflito entre unidades biológicas ("raças biológicas") e sim entre identidades culturais (também chamadas de raças ou etnias,em sentido antropológico) , tem a ver com a opressão da cultura negra e o favorecimento da cultura branca. Ignorar as diferenças (culturais, de oportunidade, etc) entre negros e brancos só favorece essa opressão:
Na foto :"Só brancos nascem?" . Biologicamente, raças humanas não existem. Mas negar que existam raças humanas resolve o problema do racismo?
Demonizadas pelas igrejas neopentecostais, o preconceito contra as religiões afro-brasileiras se institucionalizou.
O racismo existe e quem não o vê e o nega são os favorecidos por ele. Para esses não há nada de estranho revistas com capas apenas com brancos, mas é reprovável que uma negra seja eleita como a mulher mais bonita do mundo. E os cultos afro-brasileiros lhe parecem ser "demoníacos", "primitivos", nada relacionados com a religião "organizada" branca. Provavelmente para esses, não há nada de chocante e ofensivo ser chamado de macaco, porque eles nunca foram chamados de macacos com uma conotação depreciativa.
A explicação biológica não diminui a ofensa. O termo "macaco" é um historicamente racista. Mesmo que para biologia macacos não sejam "menos evoluídos" que o homem. Mesmo que o termo seja usado vulgarmente para representar nossos parentes atuais, nossos ancestrais e por consequência o Homo sapiens. O ofendido não pode ser constrangido a se calar. E nesse contexto dizer "Não!Eu NÃO sou um macaco!" é um ato de resistência. E, por isso, aquele que sofre a ofensa deve ter meios legais de se proteger e combater o racismo.
Como disse o ativista Marcus Guellwaar : "A campanha racista com aquela frase racista veio para dizer: NÃO É CRIME CHAMAR NEGROS DE MACACOS."
Conclusão
O racismo já foi usado pra contestar o conceito de evolução, através da incorreta idéia de que a herança ocorre mistura e, por isso a reprodução sexuada não produziria diversidade.
Posteriormente o discurso biológico (na verdade, pseudobiologico) foi incorporado pela cultura racista, ao tratar o negro como um intermediário da evolução humana, "menos evoluído" que o branco.
Atualmente, a ideia de ausência de raças humanas ( no sentido biológico) e a falsa idéia de igualdade são utilizadas como argumentos contra políticas de ação afirmativa, numa defesa da meritocracia que não leva em conta as desigualdades de oportunidades entre brancos e negros.
Retomo a pergunta do início do texto: Não seria a campanha "somos todos macacos" novamente a utilização equivocada do discurso biológico, camuflando e conservando a desigualdade social, silenciando a indignação negra diante de uma ofensa de natureza racista?
"Onde houver a reação do oprimido, vai ter o opressor querendo se apropriar."(C.M.)
Onde nós guardamos o nosso racismo?
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O pensamento da época, o "Zeitgeist", a ideia do Darwinismo Social, levou a genocídios na África e o Holocausto. Hoje você seria linchado por expressar essas ideias. Mas o pensamento de hoje traz outros males. Amanhã vamos detestar muitos dos grandes pensadores de hoje.
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